FACULDADE MAURÍCIO DE NASSAU
CURSO: DIREITO
DISCIPLINA: DIREITO ADMINISTRATIVO
PROF.: CARLOS ROBERTO LIMA MARQUES
"Segundo lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio
da supremacia do interesse público sobre o particular é o princípio
geral do direito inerente a qualquer sociedade, e também condição
de sua existência, ou seja, um dos principais fios condutores da
conduta administrativa. Pois a própria existência do Estado somente
tem sentido se o interesse a ser por ele perseguido e protegido for
o interesse público, o interesse da coletividade." (MELLO, Celso
Antonio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3.
ed. São Paulo: Malheiros, 1999)
Ora, senão vejamos a afirmação contida no texto que ora se nos
apresenta para crítica:
"O que nos importa aqui – e isso foi realizado – é resgatar, a
despeito da necessidade de se aprofundar na complexidade
lingüístico-conceitual das ideias referidas, a noção de que há certos
interesses particulares que não sucumbem ao interesse público e,
nesse sentido, possuem supremacia. Não se trata de afirmar que
certos direitos são absolutos, mas afirmar que certos interesses
particulares (legítimos) serão protegidos mesmo ante um suposto
interesse público".
Tendo o Direito Administrativo e o Direito Constitucional poderes
legítimos para regrar as condutas de uma sociedade, de uma
coletividade, preponderando uma proteção ao particular/ao cidadão
(note-se que trazemos do coletivo para a unidade a expressão de
protecionismo), havemos de levar em consideração que as normas
ainda são para defender a sociedade da sociedade, distinguindo
aí, desde a Grécia e Roma Antigas, a realidade do domínio de uma
classe sobre a outra.
É certo que o referencial histórico, após tantas batalhas desde
a antiguidade, passando pela Idade Média, as Monarquias
Absolutistas, a Carta Magna Inglesa, a Revolução Francesa, foram
lutas de imenso valor para as mudanças na conjectura do trato
Estado/Sociedade; mas o foram também constituídas por interesses
particulares daqueles que, em algum momento, galgaram o poder
e o "direito" de aventar os desígnios de uma sociedade através da
publicação de leis, de normas e diretrizes - amparadas no espectro
do Poder Constituído. São contextos do Ordenamento Jurídico
sustentados por uma Constituição para assim se valorar a ideia de
legitimidade.
Lembremos que, aqueles que foram içados ao poder, constituintes,
ainda o são, antes disso, cidadãos com interesses particulares.
Interesses que demonstram, de forma contínua - como o foram as
Capitanias Hereditárias - a perpetuação no poder, sob o risco de
que o novo venha reformar estes conceitos.
Mas não será este 'novo' também mais um particular em busca do
seu próprio interesse?
Havemos que acreditar que as normas Administrativas e
Constitucionais sejam um benefício a toda uma sociedade, desde
que seguidas, à risca, os direitos e deveres em igualdade a toda
esta sociedade.
Sendo assim, o direito privado legítimo há que ser protegido, desde
que, avaliados exemplos hipotéticos contidos no texto, não o seja
em detrimento ao bem de uma coletividade.
O que nos leva à afirmativa por outra perspectiva: se assim o
for, então é fácil afirmar que o interesse público se sobrepõe ao
interesse privado.
...(¹)
A supremacia do interesse privado sobre o interesse público.
O direito administrativo como garantia do cidadão frente aos
desmandos do Estado
Elaborado em 10.2009.
Marcus Vinícius Silva Martins
Mestre em Filosofia pela Universidade de Brasília Professor de Direito
Administrativo no Centro Universitário Unieuro. Membro do Núcleo
Docente Estruturante (NDE) do Centro Universitário Unieuro. Advogado
em Brasília - DF. Membro da Comissão do Terceiro Setor da OAB/DF
Não, leitor, o título não está errado! Não houve erro, nem do autor,
nem
do veículo em que este artigo circula. Trata-se, realmente, de texto
que
tem por escopo fazer contraponto à tantas vezes mencionada afirmação de
que "o interesse público tem supremacia sobre o interesse
privado". Tal
afirmação é, como se sabe, infinitamente repetida em textos científicos
e
em lições de sala de aula, como um mantra que se repete exaustivamente
em busca de iluminação.
Porém, embora exista nessa afirmação uma grande dose de verdade, o
fato é que ela não é uma verdade absoluta ou, melhor explicando, não é
a verdade toda. Isso porque, por vezes, o interesse público deverá
ceder
ante a um legítimo interesse individual a ser protegido. Afinal, será
mesmo
que o interesse público sempre deve preponderar sobre o particular?
Esse,
portanto, o tema proposto para este texto.
Passado o susto do título, comecemos por resgatar, em breve síntese, a
história do Direito Administrativo e do Direito Constitucional
modernos.
Repetidas lições já foram dadas para nos ensinar que, embora seja certo
que
sempre houve regras que disciplinassem atos e negócios da
Administração,
também é certo que essas regras não compunham, antes da modernidade,
um conjunto de normas particularmente destinadas a disciplinar as
atividades daqueles que exerciam o poder dentro de uma sociedade.
Voltando os olhos ao passado, em direção à Grécia e Roma Antigas,
os dois berços da civilização ocidental, vemos que, dada a realidade
político-cultural de então, embora nem todas as pessoas dessas
sociedades
possuíssem o status de cidadão, aqueles que assim eram considerados
percebiam a cidade – a civitas romana, a polis grega – como parte de
seu
domínio. Um domínio certamente compartilhado, um domínio coletivo,
mas ainda assim um domínio. Em outras palavras, o cidadão grego e
o romano viam os negócios da cidade (do Estado, diz-se hoje) como
umbilicalmente ligados a si mesmos. Ousamos dizer que nunca a noção
de cidadania foi tão profundamente sentida e vivida pelos cidadãos de
um
Estado. Assim nos ensinam os livros de história.
Com todas as ponderações que possam ser feitas a essa informação, ela
carrega uma matriz essencialmente verdadeira, a partir da qual se pode
concluir que essas sociedades não sentiram a necessidade de um ramo
do direito que disciplinasse a relação entre a Administração Pública e
o
particular, pois essa distinção não era feita, naquela época, sob as
cores
que hoje se faz. Nessas sociedades, a disciplina da Administração
Pública
era feita ao vivo e a cores, em tempo real, pela efetiva participação
do
cidadão nos negócios públicos. Não se tinha inventado, ainda, uma
classe
social "apartada" dos demais – a classe dos administradores
públicos, à
qual se "delegavam" as decisões políticas.
Saindo da Antigüidade Clássica, grosso modo falando, a Europa passa a
viver o que se denomina por Idade Média, marcada pelo sistema feudal
de produção, no qual grandes proprietários de terras (os senhores
feudais)
dominavam, de modo mais ou menos independente, certa coletividade –
essa estrutura, pois, compunham os feudos. Esse sistema vai, ao longo
da história, se convolar nas monarquias absolutistas do fim do período
medieval europeu.
São, portanto, as Monarquias Absolutistas o referencial histórico para
tratarmos da gênese do Direito Administrativo e, com essa análise,
entendermos sua razão de ser, sua essência. Exatamente pelo fato de que,
nas Monarquias Absolutistas, o poder do Estado (no caso, o poder do
Rei) era absoluto, não faz sentido em pensar num Direito Administrativo
nesse período. Se o Estado-rei tudo pode, não há que se falar, pois, em
regras que disciplinem sua atividade. Justamente por isso, portanto,
esse
período interessa à reflexão – por ser o momento nuclear, o marco zero,
em que se verifica propriamente um conjunto vazio no que tange a regras
delimitadoras da atividade da Administração. O Estado-rei Absoluto tem
poderes absolutos sobre absolutamente tudo.
O movimento constitucionalista surge, então, nesse contexto, como luta
da classe burguesa (poderosa economicamente, mas destituída de poder
político) para limitar esse poder até então irrestrito do Estado-rei.
Com
idas e vindas na história, em ritmos diferentes para cada canto do
mundo,
o constitucionalismo tem um primeiro grande referencial na Magna Carta
do Rei João Sem Terra, em 1215, na Inglaterra, que é o resultado da
luta
da burguesia de então para limitar os poderes políticos do monarca. Daí
nascem, pois, a ação de habeas corpus (limite ao poder do rei de
prender e
punir o súdito) e o princípio do no taxation without representation
(limite
ao poder do rei de tributar).
Desse momento, pois, saltamos para a França e sua famosa Revolução
de 1789. Trata-se da mais falada e comentada das revoluções burguesas.
Nesse momento, a busca pela superação do sistema das Monarquias
Absolutistas ganha contornos mais definidos, com filósofos repudiando
acentuadamente a idéia de um Estado-rei com poderes ilimitados
(e desmedidos) perante seus súditos. Nesse contexto, passa a ser
implementado, na França pós-revolução, um conjunto de normas que
visam, justamente, reger a atividade da Administração. Curiosamente,
o Direito Administrativo é considerado pela doutrina especializada, por
aproximação histórica, como nascido em data exata, sendo ela a data da
publicação da norma francesa conhecida como "lei 28 pluvioso do
ano
VIII" – lembrando que "pluvioso" seria um dos meses do
novo calendário
francês, instituído com base no ano da Revolução; lembrando, ademais,
que
o "VIII" refere-se, justamente, ao oitavo ano da revolução.
Pois bem, esse contexto de idéias é necessário para se entender que a
principal função do Direito Administrativo, desde seu primeiro momento,
não é outra senão limitar, frear o poder do Estado, que antes era
ilimitado
porque absoluto nas mãos do monarca. Em sua perspectiva essencial,
portanto, o Direito Administrativo (ao lado do Direito Constitucional)
é um conjunto de regras garantidoras dos direitos do particular perante
o poder constituído, que passa a ser regrado, limitado [01]. Essas
idéias
deveriam ser sempre a lição número um de qualquer texto ou curso de
Direito Administrativo, mostrando que essa ciência surge como resultado
de uma demanda histórica muito bem definida pela necessidade de se
conter o abuso, os desmandos daqueles que se encontram no exercício do
Poder Político – sejam os monarcas absolutistas de antigamente, sejam
os
atuais monarcas constitucionalistas do direito comparado, sejam os
nossos
presidentes, ministros e parlamentares de um Estado republicano.
Aqui, portanto, estamos prontos para voltar para o título. Lá foi
registrado
que o interesse privado exerce supremacia sobre o interesse público.
É claro que o título foi pensado para ser provocativo, cabendo fazer as
devidas ponderações. Comecemos notando que a afirmação de que "o
interesse público tem supremacia sobre o interesse privado" não
está,
evidentemente, errada. É claro que ela está correta, desde que
corretamente
compreendida.
Para nossa análise, tomemos dois exemplos. Suponhamos que uma
determinada comunidade do nordeste brasileiro, afligida pela seca,
possa
ter seu problema de abastecimento de água resolvido por meio de um
manancial subterrâneo sob determinadas terras particulares. O direito
de propriedade, pensado nos moldes clássicos da teoria
civilista-liberal,
impediria que se afastasse o direito de propriedade desse particular em
prol de se criar um açude onde pudesse se abastecer toda uma população
local. Porém, hoje está nítida a evolução do direito civil, que
abandonou
sua verve liberal e adotou uma nova estrutura social, preocupada não
mais
exclusivamente com o patrimônio, mas também, e principalmente, com a
pessoa humana e com os valores da ética e solidariedade. Nesse
contexto,
então, o interesse de tal proprietário em manter íntegro seu domínio, à
custa
do sacrifício de toda uma coletividade é, pois, um interesse que pode
ser
dito "um interesse privado egoístico".
Por outro lado, podemos tecer uma segunda linha de suposição.
Imaginemos, pois, que uma coletividade de produtores de arroz deseje
que
um certo particular não produza, também ele, o mesmo produto, ou seja,
arroz. Digamos que esses produtores já estão estabelecidos há décadas
no mesmo local e que esse particular represente um novo proprietário.
Os produtores antigos tentam demovê-lo da idéia de plantar, também ele,
arroz, pois é do interesse da coletividade que o mercado consumidor não
se sature – pois os preços irão, certamente, cair... Bem, nesse caso,
ao
menos até onde nossa vista alcança, parece não haver divergências em
dizer que o particular interesse de tal proprietário em produzir arroz
não
se configura como interesse privado egoístico, mas, sim, um
"legítimo
interesse privado".
Talvez essa situação hipotética não tenha sido bastante. Por isso,
imaginemos, ainda na mesma linha do "legítimo interesse
privado", outra
hipótese, mais próxima do dia-a-dia. Imaginemos, pois, que uma
sociedade
empresária revenda combustível adulterado. Pelo poder de polícia da
Administração, é ela dotada de prerrogativas para, em nome do interesse
público, fiscalizar e, no caso, interditar a bomba de combustível para
impedir que o produto fora das especificações seja levado ao mercado
consumidor. Contudo, a sociedade empresária tem o legítimo interesse
de que esses atos administrativos de constrição sejam praticados apenas
e
somente por agente público competente. Vale dizer, um fiscal da
vigilância
sanitária que constate a venda de combustível adulterado não poderá
interditar a respectiva bomba, cabendo-lhe, apenas, o dever de informar
as autoridades competentes a respeito do ilícito para que elas tomem
as medidas constritivas. Em suma, mesmo diante de flagrante interesse
público em evitar a venda de combustível adulterado para a
coletividade,
o particular tem legítimo interesse em que o ato de constrição aos seus
direitos sejam praticados por autoridade competente – requisito do ato
administrativo que não poderá ser afastado nem mesmo em nome do
interesse público, pois representa verdadeira garantia para o
particular-
administrado. Novamente, prevalecerá, no caso, o interesse privado.
Um outro simples e rápido exemplo pode ainda ser lembrado. Um réu
condenado em processo penal regular terá contra si exarado mandado de
prisão, que será cumprido mediante atuação da polícia judiciária que,
como
é evidente, não exerce, em sua atividade, mister judicante, mas, sim,
função
administrativa. O mandado de prisão permitirá à Administração praticar
uma série de atos, como, por exemplo, invadir a residência do
indivíduo,
caso necessário para efetuar sua prisão. Contudo, pela conhecida regra
constitucional, não poderá a autoridade policial, a pretexto de
proteger o
interesse público de prender o réu condenado, invadir a residência
durante
a noite. Para esse indivíduo há legítimo interesse privado de que sua
residência não seja invadida no período noturno, ainda que para cumprir
mandado de prisão para puni-lo por crime pelo qual fora definitivamente
condenado, em nome, repita-se, do interesse público.
Assim, colocamos a questão nos seus devidos termos. Se estivermos
diante
de um interesse privado egoístico, o interesse público prevalecerá, de
modo
que a Administração estará legitimada a usar de suas prerrogativas para
afastar o interesse particular em prol da tutela à coletividade. Já,
por outro
lado, se estivermos diante de um interesse privado legítimo, a esfera
de
direitos do particular passa a ser indevassável pela Administração,
mesmo
sob o argumento de se proteger o interesse público.
Evidentemente, a questão não é simples e demanda uma discussão de
maior densidade filosófica. Pensemos, por exemplo, que a própria noção
de "legitimidade" (do interesse particular) é uma idéia que
não comporta
definição rígida. Em primeira análise, numa interpretação semântica do
vocábulo, "legítimo" é o que tem amparo em lei. Mas isso não
basta,
pois há leis que elas próprias não são constitucionalmente válidas,
fato
que desloca a análise do que venha a ser um interesse
"legítimo" para
o contexto do Ordenamento Jurídico como um todo, sustentado pela
Constituição Federal. Porém, ainda assim a idéia de
"legitimidade"
permanece volúvel e de difícil determinação, principalmente quando
pensamos em normas na forma de princípios de alto grau de abstração.
Portanto, antes de ser uma fórmula simples, a "legitimidade"
do interesse é
um conceito aberto que acaba sofrendo mutações ao longo do caminhar do
grupo social.
Por outro lado, continuando a análise dos termos propostos, vemos
que a conclusão no sentido de que existe uma supremacia do interesse
particular legítimo perante o interesse público depende, ela mesma, da
noção de "interesse público" com que se trabalha. Isso
porque, num certo
sentido, poderíamos dizer que é do interesse público que certos
interesses
particulares (legítimos) sejam indevassáveis [02]. Por fim, sabemos que
estamos propondo, em nossos exemplos, situações de antinomias reais,
onde princípios divergentes colidem, devendo ser solucionado o caso
concreto a partir do método da ponderação de valores.
Porém, embora enxergando a necessidade de um desenvolvimento
filosófico mais profundo das noções aqui lembradas, entendemos
que a idéia central do texto foi atingida. E qual seria ela? Trazer à
luz
uma informação importante ao debate sobre a razão de ser do Direito
Administrativo – qual seja, sua função primordial de delimitar o poder
da Administração, delimitar suas prerrogativas, protegendo o particular
contra os abusos e desmandos daqueles que exercem o poder. Não que seja
novidade, mas essa nos parece ser uma perspectiva indevidamente deixada
em segundo plano nas lições contemporâneas de Direito Administrativo.
Dentro dessa proposta, quisemos focar a idéia de que nem sempre
prevalece o interesse público, sendo a proteção de interesses
particulares
legítimos a própria razão de ser do Direito Administrativo.
Foram usados, acima, exemplos simples para visualizarmos a distinção
entre o interesse privado egoístico e o interesse privado legítimo.
Apenas
essa é a função dos exemplos. O leitor deve ter em conta, portanto,
esse
caráter meramente ilustrativo de uma distinção fundamental – qual seja,
a existência de duas ordens de interesses privados: uma, egoística;
outra,
legítima. A ordem dos interesses privados legítimos, portanto, compõe
um
núcleo de direitos que a Administração não poderá jamais penetrar, nem
mesmo em nome do interesse público, fato que decorre da própria razão
de
ser.
O que nos importa aqui – e isso foi realizado – é resgatar, a despeito
da
necessidade de se aprofundar na complexidade lingüístico-conceitual das
idéias referidas, a noção de que há certos interesses particulares que
não
sucumbem ao interesse público e, nesse sentido, possuem supremacia. Não
se trata de afirmar que certos direitos são absolutos, mas afirmar que
certos
interesses particulares (legítimos) serão protegidos mesmo ante um
suposto
interesse público. O que queremos lembrar, com isso, é a própria gênese
do
Direito Administrativo e sua razão de ser.
Parece que tem sido esquecida a lição de que o Direito Administrativo
é, em essência, uma proteção ao particular, uma proteção ao cidadão,
por meio de regras e limites ao poder do Estado. Nesse sentido, sempre
haverá situações em que o interesse particular não poderá ser
subordinado
ao interesse público, justamente por se configurar como interesse
privado legítimo, escudado pelo Ordenamento Jurídico, indevassável
à Administração. Essa a lição que a história nos ensina e que devemos
lembrar como ferramenta hermenêutica ao trabalharmos com o Direito
Administrativo.
"Segundo lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da
supremacia do interesse público sobre o particular é o princípio geral do direito
inerente a qualquer sociedade, e também condição de sua existência, ou seja, um dos
principais fios condutores da conduta administrativa. Pois a própria existência do
Estado somente tem sentido se o interesse a ser por ele perseguido e protegido for o
interesse público, o interesse da coletividade." (MELLO, Celso Antonio Bandeira de.
Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1999)
A supremacia do interesse privado sobre o interesse público.
O direito administrativo como garantia do cidadão frente aos
desmandos do Estado
Elaborado em 10.2009.
Marcus Vinícius Silva Martins
Mestre em Filosofia pela Universidade de Brasília Professor de Direito
Administrativo no Centro Universitário Unieuro. Membro do Núcleo
Docente Estruturante (NDE) do Centro Universitário Unieuro. Advogado
em Brasília - DF. Membro da Comissão do Terceiro Setor da OAB/DF
Não, leitor, o título não está errado! Não houve erro, nem do autor,
nem
do veículo em que este artigo circula. Trata-se, realmente, de texto
que
tem por escopo fazer contraponto à tantas vezes mencionada afirmação de
que "o interesse público tem supremacia sobre o interesse
privado". Tal
afirmação é, como se sabe, infinitamente repetida em textos científicos
e
em lições de sala de aula, como um mantra que se repete exaustivamente
em busca de iluminação.
Porém, embora exista nessa afirmação uma grande dose de verdade, o
fato é que ela não é uma verdade absoluta ou, melhor explicando, não é
a verdade toda. Isso porque, por vezes, o interesse público deverá
ceder
ante a um legítimo interesse individual a ser protegido. Afinal, será
mesmo
que o interesse público sempre deve preponderar sobre o particular?
Esse,
portanto, o tema proposto para este texto.
Passado o susto do título, comecemos por resgatar, em breve síntese, a
história do Direito Administrativo e do Direito Constitucional
modernos.
Repetidas lições já foram dadas para nos ensinar que, embora seja certo
que
sempre houve regras que disciplinassem atos e negócios da
Administração,
também é certo que essas regras não compunham, antes da modernidade,
um conjunto de normas particularmente destinadas a disciplinar as
atividades daqueles que exerciam o poder dentro de uma sociedade.
Voltando os olhos ao passado, em direção à Grécia e Roma Antigas,
os dois berços da civilização ocidental, vemos que, dada a realidade
político-cultural de então, embora nem todas as pessoas dessas
sociedades
possuíssem o status de cidadão, aqueles que assim eram considerados
percebiam a cidade – a civitas romana, a polis grega – como parte de
seu
domínio. Um domínio certamente compartilhado, um domínio coletivo,
mas ainda assim um domínio. Em outras palavras, o cidadão grego e
o romano viam os negócios da cidade (do Estado, diz-se hoje) como
umbilicalmente ligados a si mesmos. Ousamos dizer que nunca a noção
de cidadania foi tão profundamente sentida e vivida pelos cidadãos de
um
Estado. Assim nos ensinam os livros de história.
Com todas as ponderações que possam ser feitas a essa informação, ela
carrega uma matriz essencialmente verdadeira, a partir da qual se pode
concluir que essas sociedades não sentiram a necessidade de um ramo
do direito que disciplinasse a relação entre a Administração Pública e
o
particular, pois essa distinção não era feita, naquela época, sob as
cores
que hoje se faz. Nessas sociedades, a disciplina da Administração
Pública
era feita ao vivo e a cores, em tempo real, pela efetiva participação
do
cidadão nos negócios públicos. Não se tinha inventado, ainda, uma
classe
social "apartada" dos demais – a classe dos administradores
públicos, à
qual se "delegavam" as decisões políticas.
Saindo da Antigüidade Clássica, grosso modo falando, a Europa passa a
viver o que se denomina por Idade Média, marcada pelo sistema feudal
de produção, no qual grandes proprietários de terras (os senhores
feudais)
dominavam, de modo mais ou menos independente, certa coletividade –
essa estrutura, pois, compunham os feudos. Esse sistema vai, ao longo
da história, se convolar nas monarquias absolutistas do fim do período
medieval europeu.
São, portanto, as Monarquias Absolutistas o referencial histórico para
tratarmos da gênese do Direito Administrativo e, com essa análise,
entendermos sua razão de ser, sua essência. Exatamente pelo fato de que,
nas Monarquias Absolutistas, o poder do Estado (no caso, o poder do
Rei) era absoluto, não faz sentido em pensar num Direito Administrativo
nesse período. Se o Estado-rei tudo pode, não há que se falar, pois, em
regras que disciplinem sua atividade. Justamente por isso, portanto,
esse
período interessa à reflexão – por ser o momento nuclear, o marco zero,
em que se verifica propriamente um conjunto vazio no que tange a regras
delimitadoras da atividade da Administração. O Estado-rei Absoluto tem
poderes absolutos sobre absolutamente tudo.
O movimento constitucionalista surge, então, nesse contexto, como luta
da classe burguesa (poderosa economicamente, mas destituída de poder
político) para limitar esse poder até então irrestrito do Estado-rei.
Com
idas e vindas na história, em ritmos diferentes para cada canto do
mundo,
o constitucionalismo tem um primeiro grande referencial na Magna Carta
do Rei João Sem Terra, em 1215, na Inglaterra, que é o resultado da
luta
da burguesia de então para limitar os poderes políticos do monarca. Daí
nascem, pois, a ação de habeas corpus (limite ao poder do rei de
prender e
punir o súdito) e o princípio do no taxation without representation
(limite
ao poder do rei de tributar).
Desse momento, pois, saltamos para a França e sua famosa Revolução
de 1789. Trata-se da mais falada e comentada das revoluções burguesas.
Nesse momento, a busca pela superação do sistema das Monarquias
Absolutistas ganha contornos mais definidos, com filósofos repudiando
acentuadamente a idéia de um Estado-rei com poderes ilimitados
(e desmedidos) perante seus súditos. Nesse contexto, passa a ser
implementado, na França pós-revolução, um conjunto de normas que
visam, justamente, reger a atividade da Administração. Curiosamente,
o Direito Administrativo é considerado pela doutrina especializada, por
aproximação histórica, como nascido em data exata, sendo ela a data da
publicação da norma francesa conhecida como "lei 28 pluvioso do
ano
VIII" – lembrando que "pluvioso" seria um dos meses do
novo calendário
francês, instituído com base no ano da Revolução; lembrando, ademais,
que
o "VIII" refere-se, justamente, ao oitavo ano da revolução.
Pois bem, esse contexto de idéias é necessário para se entender que a
principal função do Direito Administrativo, desde seu primeiro momento,
não é outra senão limitar, frear o poder do Estado, que antes era
ilimitado
porque absoluto nas mãos do monarca. Em sua perspectiva essencial,
portanto, o Direito Administrativo (ao lado do Direito Constitucional)
é um conjunto de regras garantidoras dos direitos do particular perante
o poder constituído, que passa a ser regrado, limitado [01]. Essas
idéias
deveriam ser sempre a lição número um de qualquer texto ou curso de
Direito Administrativo, mostrando que essa ciência surge como resultado
de uma demanda histórica muito bem definida pela necessidade de se
conter o abuso, os desmandos daqueles que se encontram no exercício do
Poder Político – sejam os monarcas absolutistas de antigamente, sejam
os
atuais monarcas constitucionalistas do direito comparado, sejam os
nossos
presidentes, ministros e parlamentares de um Estado republicano.
Aqui, portanto, estamos prontos para voltar para o título. Lá foi
registrado
que o interesse privado exerce supremacia sobre o interesse público.
É claro que o título foi pensado para ser provocativo, cabendo fazer as
devidas ponderações. Comecemos notando que a afirmação de que "o
interesse público tem supremacia sobre o interesse privado" não
está,
evidentemente, errada. É claro que ela está correta, desde que
corretamente
compreendida.
Para nossa análise, tomemos dois exemplos. Suponhamos que uma
determinada comunidade do nordeste brasileiro, afligida pela seca,
possa
ter seu problema de abastecimento de água resolvido por meio de um
manancial subterrâneo sob determinadas terras particulares. O direito
de propriedade, pensado nos moldes clássicos da teoria
civilista-liberal,
impediria que se afastasse o direito de propriedade desse particular em
prol de se criar um açude onde pudesse se abastecer toda uma população
local. Porém, hoje está nítida a evolução do direito civil, que
abandonou
sua verve liberal e adotou uma nova estrutura social, preocupada não
mais
exclusivamente com o patrimônio, mas também, e principalmente, com a
pessoa humana e com os valores da ética e solidariedade. Nesse
contexto,
então, o interesse de tal proprietário em manter íntegro seu domínio, à
custa
do sacrifício de toda uma coletividade é, pois, um interesse que pode
ser
dito "um interesse privado egoístico".
Por outro lado, podemos tecer uma segunda linha de suposição.
Imaginemos, pois, que uma coletividade de produtores de arroz deseje
que
um certo particular não produza, também ele, o mesmo produto, ou seja,
arroz. Digamos que esses produtores já estão estabelecidos há décadas
no mesmo local e que esse particular represente um novo proprietário.
Os produtores antigos tentam demovê-lo da idéia de plantar, também ele,
arroz, pois é do interesse da coletividade que o mercado consumidor não
se sature – pois os preços irão, certamente, cair... Bem, nesse caso,
ao
menos até onde nossa vista alcança, parece não haver divergências em
dizer que o particular interesse de tal proprietário em produzir arroz
não
se configura como interesse privado egoístico, mas, sim, um
"legítimo
interesse privado".
Talvez essa situação hipotética não tenha sido bastante. Por isso,
imaginemos, ainda na mesma linha do "legítimo interesse
privado", outra
hipótese, mais próxima do dia-a-dia. Imaginemos, pois, que uma
sociedade
empresária revenda combustível adulterado. Pelo poder de polícia da
Administração, é ela dotada de prerrogativas para, em nome do interesse
público, fiscalizar e, no caso, interditar a bomba de combustível para
impedir que o produto fora das especificações seja levado ao mercado
consumidor. Contudo, a sociedade empresária tem o legítimo interesse
de que esses atos administrativos de constrição sejam praticados apenas
e
somente por agente público competente. Vale dizer, um fiscal da
vigilância
sanitária que constate a venda de combustível adulterado não poderá
interditar a respectiva bomba, cabendo-lhe, apenas, o dever de informar
as autoridades competentes a respeito do ilícito para que elas tomem
as medidas constritivas. Em suma, mesmo diante de flagrante interesse
público em evitar a venda de combustível adulterado para a
coletividade,
o particular tem legítimo interesse em que o ato de constrição aos seus
direitos sejam praticados por autoridade competente – requisito do ato
administrativo que não poderá ser afastado nem mesmo em nome do
interesse público, pois representa verdadeira garantia para o
particular-
administrado. Novamente, prevalecerá, no caso, o interesse privado.
Um outro simples e rápido exemplo pode ainda ser lembrado. Um réu
condenado em processo penal regular terá contra si exarado mandado de
prisão, que será cumprido mediante atuação da polícia judiciária que,
como
é evidente, não exerce, em sua atividade, mister judicante, mas, sim,
função
administrativa. O mandado de prisão permitirá à Administração praticar
uma série de atos, como, por exemplo, invadir a residência do
indivíduo,
caso necessário para efetuar sua prisão. Contudo, pela conhecida regra
constitucional, não poderá a autoridade policial, a pretexto de
proteger o
interesse público de prender o réu condenado, invadir a residência
durante
a noite. Para esse indivíduo há legítimo interesse privado de que sua
residência não seja invadida no período noturno, ainda que para cumprir
mandado de prisão para puni-lo por crime pelo qual fora definitivamente
condenado, em nome, repita-se, do interesse público.
Assim, colocamos a questão nos seus devidos termos. Se estivermos
diante
de um interesse privado egoístico, o interesse público prevalecerá, de
modo
que a Administração estará legitimada a usar de suas prerrogativas para
afastar o interesse particular em prol da tutela à coletividade. Já,
por outro
lado, se estivermos diante de um interesse privado legítimo, a esfera
de
direitos do particular passa a ser indevassável pela Administração,
mesmo
sob o argumento de se proteger o interesse público.
Evidentemente, a questão não é simples e demanda uma discussão de
maior densidade filosófica. Pensemos, por exemplo, que a própria noção
de "legitimidade" (do interesse particular) é uma idéia que
não comporta
definição rígida. Em primeira análise, numa interpretação semântica do
vocábulo, "legítimo" é o que tem amparo em lei. Mas isso não
basta,
pois há leis que elas próprias não são constitucionalmente válidas,
fato
que desloca a análise do que venha a ser um interesse
"legítimo" para
o contexto do Ordenamento Jurídico como um todo, sustentado pela
Constituição Federal. Porém, ainda assim a idéia de
"legitimidade"
permanece volúvel e de difícil determinação, principalmente quando
pensamos em normas na forma de princípios de alto grau de abstração.
Portanto, antes de ser uma fórmula simples, a "legitimidade"
do interesse é
um conceito aberto que acaba sofrendo mutações ao longo do caminhar do
grupo social.
Por outro lado, continuando a análise dos termos propostos, vemos
que a conclusão no sentido de que existe uma supremacia do interesse
particular legítimo perante o interesse público depende, ela mesma, da
noção de "interesse público" com que se trabalha. Isso
porque, num certo
sentido, poderíamos dizer que é do interesse público que certos
interesses
particulares (legítimos) sejam indevassáveis [02]. Por fim, sabemos que
estamos propondo, em nossos exemplos, situações de antinomias reais,
onde princípios divergentes colidem, devendo ser solucionado o caso
concreto a partir do método da ponderação de valores.
Porém, embora enxergando a necessidade de um desenvolvimento
filosófico mais profundo das noções aqui lembradas, entendemos
que a idéia central do texto foi atingida. E qual seria ela? Trazer à
luz
uma informação importante ao debate sobre a razão de ser do Direito
Administrativo – qual seja, sua função primordial de delimitar o poder
da Administração, delimitar suas prerrogativas, protegendo o particular
contra os abusos e desmandos daqueles que exercem o poder. Não que seja
novidade, mas essa nos parece ser uma perspectiva indevidamente deixada
em segundo plano nas lições contemporâneas de Direito Administrativo.
Dentro dessa proposta, quisemos focar a idéia de que nem sempre
prevalece o interesse público, sendo a proteção de interesses
particulares
legítimos a própria razão de ser do Direito Administrativo.
Foram usados, acima, exemplos simples para visualizarmos a distinção
entre o interesse privado egoístico e o interesse privado legítimo.
Apenas
essa é a função dos exemplos. O leitor deve ter em conta, portanto,
esse
caráter meramente ilustrativo de uma distinção fundamental – qual seja,
a existência de duas ordens de interesses privados: uma, egoística;
outra,
legítima. A ordem dos interesses privados legítimos, portanto, compõe
um
núcleo de direitos que a Administração não poderá jamais penetrar, nem
mesmo em nome do interesse público, fato que decorre da própria razão
de
ser.
O que nos importa aqui – e isso foi realizado – é resgatar, a despeito
da
necessidade de se aprofundar na complexidade lingüístico-conceitual das
idéias referidas, a noção de que há certos interesses particulares que
não
sucumbem ao interesse público e, nesse sentido, possuem supremacia. Não
se trata de afirmar que certos direitos são absolutos, mas afirmar que
certos
interesses particulares (legítimos) serão protegidos mesmo ante um
suposto
interesse público. O que queremos lembrar, com isso, é a própria gênese
do
Direito Administrativo e sua razão de ser.
Parece que tem sido esquecida a lição de que o Direito Administrativo
é, em essência, uma proteção ao particular, uma proteção ao cidadão,
por meio de regras e limites ao poder do Estado. Nesse sentido, sempre
haverá situações em que o interesse particular não poderá ser
subordinado
ao interesse público, justamente por se configurar como interesse
privado legítimo, escudado pelo Ordenamento Jurídico, indevassável
à Administração. Essa a lição que a história nos ensina e que devemos
lembrar como ferramenta hermenêutica ao trabalharmos com o Direito
Administrativo.
"Segundo lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da
supremacia do interesse público sobre o particular é o princípio geral do direito
inerente a qualquer sociedade, e também condição de sua existência, ou seja, um dos
principais fios condutores da conduta administrativa. Pois a própria existência do
Estado somente tem sentido se o interesse a ser por ele perseguido e protegido for o
interesse público, o interesse da coletividade." (MELLO, Celso Antonio Bandeira de.
Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1999)